11.1.08

Samba de Inverno

Entreolharam-se. Era o último dia. O último dia em que se chamavam marido e mulher. Dali em diante. Um futuro diferente. Começado muito antes do último dia. Os dois encostados, num corredor. Tristes. Sem saberem chorar.

Lá dentro

os adultos falaram e pareciam decidir e orquestrar e
e as palavras
"adaptação"
"aprendizagem"
"reajustamentos"
"despesas"

e ela

deve ter parecido




tão

mas tão antipática por não ter dito uma palavra ou quase
("eu não saio do Porto")

porque por dentro umas asas e aquela janela partida,

ela riscou o céu estupidamente azul


mas as palavras complicadas continuaram

e ele,
braços cruzados (como se toda uma vida contrariada por incapacidades)




a perna dele tremeu

como naquele dia.



ela

Voltou de metro mas não foi para casa, não foi trabalhar. Tinha coisas para fazer, tinha coisas



responsabilidades

mas só pôde andar andar andar andar


entrou na casa-de-banho do shopping e saiu do corpo de mulher

viu-se a chorar pela parede abaixo durante uns minutos, sem um som

saiu depois

com um ar impecável porque ninguém repito ninguém te vê chorar



antes, nesse dia

ele disse "já cá estou"

como naquele dia

ela atrasou-se

mas naquele outro dia

não


FIM

2 comentários:

fina estampa disse...

"hoje é o primeiro dia do resto da tua vida"

Joana Amoêdo disse...

:-)