7.8.08

Endaira abre a carta e vê no seu interior um modesto papel amarelo. As missivas sucediam-se, semana após semana, e a dúvida sobre quem seria o remetente começava a incomodá-la. No início sorria ao recebê-las, mas o desconforto rapidamente se instalou no acto de abrir a fechadura da caixa do correio.
"Em tempos privei com uma daquelas pessoas que se publicitam (ainda que inconscientemente) como simples e calmas. Tudo o que dizia era num tom moderado e nunca falava alto, só quando algum tresloucado a levava aos extremos. A culpa nunca era dela. As pessoas que se apaixonavam por esta pessoa, faziam-no de modo descabido, coisas impensáveis aconteciam, mulheres e homens perdiam a cabeça e ela fugia, mantinha-se na sua postura serena, dizia sempre não entender o fascínio exercido nos outros. Fui uma das suas vítimas, numa paixão que julguei amor e que ainda hoje me ocupa, desta feita a mente no lugar do coração. Algumas vezes repetiu, em conversas comigo, tratar-se de uma pessoa normal, que só queria era paz e que ninguém se metesse com ela. Nas suas criações artísticas, o conceito de falsidade estava presente, ainda que por palavras subtis era esse o leitmotiv, a encenação, a sugestão. Quem a conhecesse superficialmente ficava com uma ideia totalmente errada, de alguém verdadeiramente apaixonante. Depois de a conhecerem não entendiam onde se tinha escondido o motivo para tanto fascínio mas, em vez de desisitirem, desiludidas, prosseguiam uma busca infrutífera (se é que existe algo infrutífero numa busca) por algo mais, algo que deveria estar ali, que teria, então, obrigatoriamente, de aparecer com os dias, com a insistência, como por magia. A maior parte de nós acabaria por ver o engano, recusando-se a assumir o cativeiro. O que é certo é que os sinais sempre lá tinham estado, desde o primeiro contacto, desde a primeira palavra incerta proferida pelo objecto do nosso desejo. É só estarmos atentos. Desistir pode ser algo de tão corajoso quanto persistir.
N."

Sem comentários: