4.2.09

Vigésima Segunda Ficção

Caminhou com um passo pausado, agasalhada até aos pés e com o pescoço envolto no cachecol preto e macio que uma amiga lhe oferecera no Natal, e que desde então não mais largara. O cabelo revolto e enorme era sacudido pelo vento frio. Sentia-se incapaz de enfrentar a realidade visual à sua volta, incapaz de encarar a cidade que parecia fazer-lhe frente, as vidas entrecruzando-se com a sua passagem, o autocarro que parecia ter sido abandonado numa fila de trânsito que não conseguiu suportar.

Um desejo a consumia, um desejo que conhecia desde cedo, que a identificava como parte de um mundo feminino, metade de outro mundo que por mais vezes que experimentasse parecia sempre desconhecido e prometedor. Entrou no bar aberto desde o final da tarde, e reconheceu as figuras de sempre, o cheiro da cidade que a embriagava parecia ali condensado, como um perfume quase doce, nada de tubos de escape ou águas chocas como seria de esperar. Era um perfume doce e agreste ao mesmo tempo, aquele que muitas vezes se escondia mas que na altura certa lhe subia ao nariz e a levava a pensar estar eternamente dependente daquela cidade.

Ele ainda não chegara, admirara-se até com o facto de ele ter aceite o convite depois do último encontro e uma discussão despropositada e agressiva sobre livros e seus significados que culminara com um virar de costas e uma porta de carro atirada como que para o ar, num som estrondoso. Uma futilidade, pensara Bárbara, ao mesmo tempo que tinha a certeza de jamais voltar a ter paciência para trocar mais do que duas frases com ele, e muito menos voltar a telefonar-lhe e a marcar um encontro. Como poderia ter acordado, assim sem mais nem menos, a meio da noite, o corpo fervendo, tremendo de desejo por um homem que tinha rejeitado, que dizia a toda a gente ser das pessoas mais teimosas e agarradas a conceitos que tinha conhecido até então?

A verdade é que ele era, sem sombra de dúvida, o homem mais perfeito que tinha conhecido até ali e sabia, de antemão, que por isso mesmo jamais se poderia apaixonar verdadeiramente por ele e ter a relação perfeita-família-casal-casado-bodas-de-ouro que ele ambicionara logo desde os primeiros dias que tinham passado juntos depois de se terem conhecido através de amigos.

"Como conheço todas aquelas pessoas por quem nunca me consigo apaixonar. Através de amigos." - pensou Bárbara. Isso não a perturbava, não a deixava confortável. Era, apenas, a verdade. Mas entretanto ele entrara interrompendo os seus pensamentos, sugerira quase de imediato o restaurante, saíram do bar sem pedir nada, caminharam pela rua inclinada e fria rindo como dois adolescentes, entraram no carro dele, confortável, novo, cheiroso, arrumado.

À mesa de jantar, cenário onde tantas vezes ouvira as teorias impertinentes e quase insuportavelmente arrogantes desse homem e o decidia desarmar pondo a língua de fora ou dizendo uma das suas piadas lapidares, ouviu a seguinte frase:

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- Sabes que ninguém me faz o efeito que tu me fazes.

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- Digo-te e volto a repetir: para mim o sexo começa bem antes de duas pessoas se cruzarem. Por isso, neste caso, já começou há muito.
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Os dois sorriem. Da inevitabilidade e da coragem. Olharam-se com o carinho de quem se conhece bem, já quase sem os artifícios da mundanidade.
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2 comentários:

fina estampa disse...

já tinha saudades

vague disse...

tu escreves tão bem
tu sentes tão bem